Hoje, às vésperas do século 21, o Brasil é um país em que cerca de 44% das
crianças de 1ª série ainda são retidas no final do ano porque não conseguem
aprender a ler. E em que o tempo médio dos que conseguem finalizar o ensino
fundamental é de 11,2 anos, quando deveria ser de apenas oito. Inúmeros
especialistas em dificuldades de aprendizagem afirmam que pouquíssimos
adolescentes e crianças possuem comprometimento cognitivo real, ou seja, não
são capazes de aprender os conteúdos escolares como os outros. Então, se a
esmagadora maioria das crianças pode aprender, é preciso considerar que há um
sério comprometimento nas práticas de ensino; ou seja, a escola não está
conseguindo cumprir seu mais antigo papel: ensinar a ler e escrever. É preciso
socializar cada vez mais os conhecimentos disponíveis a respeito dos processos
de aprendizagem: quanto melhor o professor entender o processo de construção do
conhecimento, mais eficiente será seu trabalho. Afinal, ensinar de fato é fazer
aprender.
Os saltos do olhar
A compreensão da leitura depende da relação entre os olhos e o cérebro,
processo que há longo tempo os estudiosos procuram entender. Nas últimas três
décadas houve um avanço significativo nesse campo, mas ainda não se conseguiu
desvendar inteiramente a complexidade do ato de ler.
Há mais de cem anos se descobriu que, ao ler, nossos olhos não deslizam
linearmente sobre o texto impresso: eles dão saltos, em uma velocidade de cerca
de 200 graus por segundo, três ou quatro vezes por segundo. É certo que,
durante esses saltos, acontece um tipo de adivinhação, pois os olhos não estão
de fato vendo tudo. O tempo de fixação dos olhos a cada vez é de cerca de 50
milésimos de segundo e a distância entre as fixações depende da dificuldade
oferecida pelo material lido.
O que os olhos vêem depende muito do conhecimento do assunto. Quando lemos um
texto cuja linguagem é fácil, ou cujo conteúdo é conhecido, podemos ler em
silêncio até 200 palavras por minuto — a leitura em voz alta demora mais, pois
o movimento dos olhos é mais rápido que a emissão de palavras.
O processo de leitura depende de várias condições: a habilidade e o estilo
pessoal do leitor, o objetivo da leitura, o nível de conhecimento prévio do
assunto tratado e o nível de complexidade oferecido pelo texto.
Em um mesmo espaço de tempo, os olhos irão captar de forma diferente a mesma
quantidade de letras, dependendo da maneira pela qual elas são apresentadas: ao
acaso, na forma de palavras, ou compondo um texto. Quanto mais os olhos puderem
se apoiar no significado, ou seja, naquilo que faz sentido para quem vê, maior
a eficácia da leitura.
Você sabia?
Em um mesmo intervalo de tempo, os olhos captam:
• aproximadamente 5 letras, em uma seqüência apresentada ao acaso;
• cerca de 10 a
12 letras, em palavras avulsas conhecidas;
• cerca de 25 letras (mais ou menos cinco palavras), quando se trata de um
texto com significado.
O psicolingüista Frank Smith relativiza o poder da visão ao afirmar: sempre
damos demasiado crédito aos olhos por enxergarem. Freqüentemente seu papel na
leitura é supervalorizado. Os olhos não vêem, absolutamente, em um sentido
literal. O cérebro determina o que e como vemos. As decisões de percepção do
cérebro estão baseadas apenas em parte na informação colhida pelos olhos,
imensamente aumentadas pelo conhecimento que o cérebro já possui.
Em outras palavras, poderíamos dizer que a gente vê o que a gente sabe.
Dois fatores determinam a leitura: o texto impresso, que é visto pelos olhos, e
aquilo que está "por trás" dos olhos: o conhecimento prévio do
leitor.
Uma criança ainda não alfabetizada pode ter as melhores informações a respeito
do assunto tratado em um texto,mas, mesmo assim, não será capaz de ler, pois
não dispõe dos recursos de decodificação necessários à leitura. Ela tem
conhecimento prévio, mas não é capaz de desvendar a informação captada pelos
olhos.
O contrário também ocorre: às vezes o leitor domina perfeitamente a linguagem
escrita, mas, por falta de familiaridade com o assunto tratado, acaba não
conseguindo compreender o texto que tem diante dos olhos.
O conhecimento prévio necessário à leitura, no entanto, não se resume ao
conhecimento do assunto tratado pelo texto: envolve também o que se sabe acerca
da linguagem e da própria leitura.
Saber como os textos se organizam e que características têm, saber para que
servem os títulos e admitir que não é preciso conhecer o significado de todas
as palavras para compreender uma mensagem escrita é tão importante para a
leitura como ter intimidade com o conteúdo tratado.
O "fácil" e o "difícil" de ler têm a ver com tudo isso.
Ler vem antes de escrever
Não existe uma idade ideal para o aprendizado da leitura. Há crianças que
aprendem a ler muito cedo, em geral porque a leitura passa a ter tanta
importância para elas que não conseguem ficar sem saber.
Veja um depoimento de um desses leitores precoces, o escritor Alberto Manguel:
Aos 4 anos de idade descobri pela primeira vez que podia ler […]. Só aprendi a
escrever muito tempo depois, aos 7 anos de idade. Talvez pudesse viver sem
escrever, mas não creio que pudesse viver sem ler. Ler — descobri — vem antes
de escrever.
Muitos leitores precoces não têm características peculiares, como inteligência
acima da média ou privilégios sociais. Mas têm outro tipo de privilégio:
considerar a leitura um valor e se acharem capazes de ler.
No Brasil, há muito tempo se considera que a iniciação à leitura deve ocorrer
apenas aos 7 anos. Por isso, quando dependem da escola para aprender, nossas
crianças começam a ler muito tarde.
As crianças aprendem a ler participando de atividades de uso da escrita junto
com pessoas que dominam esse conhecimento. Aprendem a ler quando acham que
podem fazer isso. É difícil uma criança aprender a ler quando se espera dela o
fracasso. É difícil, também, ela aprender a ler se não achar finalidade na
leitura.
Todos que lêem, lêem para atender a uma necessidade pessoal: saber quais são as
notícias do dia, que novidades a revista traz, qual é a receita do prato, como
montar um equipamento, quais as regras de um jogo, obter novos conhecimentos,
apreender os encantos de um poema ou as emoções de um livro de aventuras.
A leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de
construção do significado do texto a partir do que está buscando nele, do
conhecimento que já possui a respeito do assunto, do autor e do que sabe sobre
a língua — características do gênero, do portador, do sistema de escrita…
Ninguém pode extrair informações do texto escrito decodificando letra por
letra, palavra por palavra.
Se você analisar sua própria leitura vai constatar que a decodificação é apenas
um dos procedimentos que utiliza para ler: a leitura fluente envolve uma série
de outras estratégias, isto é, de recursos para construir significado; sem
elas, não é possível alcançar rapidez e proficiência.
Uma estratégia de leitura é um amplo esquema para obter, avaliar e utilizar informação.
Há estratégias de seleção, de antecipação, de inferência e de verificação.
Estratégias de seleção: permitem que o leitor se atenha apenas aos índices
úteis, desprezando os irrelevantes. Ao ler, fazemos isso o tempo todo: nosso
cérebro "sabe", por exemplo, que não precisa se deter na letra que
vem após o "q", pois certamente será "u"; ou que nem sempre
é o caso de se fixar nos artigos, pois o gênero está definido pelo substantivo.
Estratégias de antecipação: tornam possível prever o que ainda está por vir,
com base em informações explícitas e em suposições. Se a
linguagem não for muito rebuscada e o conteúdo não for muito novo, nem muito
difícil, é possível eliminar letras em cada uma das palavras escritas em um
texto, e até mesmo uma palavra a cada cinco outras, sem que a falta de
informações prejudique a compreensão. Além de letras, sílabas e palavras,
antecipamos significados.
O gênero, o autor, o título e muitos outros índices nos informam o que é
possível que encontremos em um texto. Assim, se formos ler uma história de
Monteiro Lobato chamada Viagem ao céu, é previsível que encontraremos
determinados personagens, certas palavras do campo da astronomia e que, certamente,
alguma travessura acontecerá.
Estratégias de inferência: permitem captar o que não está dito no texto de
forma explícita. A inferência é aquilo que "lemos", mas não está
escrito. São adivinhações baseadas tanto em pistas dadas pelo próprio texto
como em conhecimentos que o leitor possui. Às vezes essas inferências se
confirmam, e às vezes não; de qualquer forma, não são adivinhações aleatórias.
Além do significado, inferimos também palavras, sílabas ou letras. Boa parte do
conteúdo de um texto pode ser antecipada ou inferida em função do contexto:
portadores, circunstâncias de aparição ou propriedades do texto.
O contexto, na verdade, contribui decisivamente para a interpretação do texto
e, com freqüência, até mesmo para inferir a intenção do autor.
Estratégias de verificação: tornam possível o controle da eficácia ou não das
demais estratégias, permitindo confirmar, ou não, as especulações realizadas.
Esse tipo de checagem para confirmar — ou não — a compreensão é inerente à
leitura.
Utilizamos todas as estratégias de leitura mais ou menos ao mesmo tempo, sem
ter consciência disso. Só nos damos conta do que estamos fazendo se formos
analisar com cuidado nosso processo de leitura, como estamos fazendo ao longo
deste texto.
Aprender a ler e ler para aprender
A leitura como prática social é sempre um meio, nunca um fim. Ler é resposta a
um objetivo, a uma necessidade pessoal.
Fora da escola, não se lê só para aprender a ler, não se lê de uma única forma,
não se decodifica palavra por palavra, não se respondem a perguntas de
verificação do entendimento preenchendo fichas exaustivas, não se fazem
desenhos para mostrar o que mais gostou e raramente se lê em voz alta, ou seja:
a prática constante da leitura não significa a repetição infindável dessas atividades
escolares.
Uma prática constante de leitura na escola pressupõe o trabalho com a
diversidade de objetivos, modalidades e textos que caracterizam as práticas de
leitura de fato. Diferentes objetivos exigem diferentes textos e cada qual, por
sua vez, exige um tipo específico, uma modalidade de leitura.
Em certos textos basta ler algumas partes, buscando a informação necessária;
outros precisam ser lidos exaustivamente, várias vezes. Há textos que se podem
ler rapidamente, mas outros devem ser lidos devagar.
Há leituras em que é necessário controlar atentamente a compreensão, voltando
atrás para se certificar do entendimento; outras em que se segue adiante sem
dificuldade, entregue apenas ao prazer de ler.
Há leituras que requerem enorme esforço intelectual e, a despeito disso, dão
vontade de ler sem parar; em outras o esforço é mínimo e, mesmo assim, dá
vontade de deixá-las para depois. Para tornar os alunos bons leitores — para
desenvolver, muito mais do que a capacidade de ler, o gosto pela leitura e um
compromisso com ela —, a escola precisa mobilizá-los internamente, pois
aprender a ler (e também ler para aprender) requer esforço.
Os alunos devem ver na leitura algo interessante e desafiador, uma conquista
capaz de dar autonomia e independência. E devem estar confiantes, condição para
enfrentar o desafio e "aprender fazendo".
Uma prática de leitura que não desperte nem cultive o desejo de ler não é uma
prática pedagógica eficiente.
“Tenho o livro aberto diante de mim, sobre a minha mesa. O autor, cujo rosto vi
no belo frontispício, está sorrindo com satisfação e sinto que estou em boas
mãos. Sei que, à medida que avançar pelos capítulos, serei apresentado àquela
antiga família de leitores, alguns famosos,muitos obscuros, da qual faço parte.
Aprenderei suas maneiras e as mudanças nessas maneiras, e as transformações que
sofreram enquanto levaram consigo, como os magos de outrora, o poder de
transformar signos mortos em memória viva. Lerei sobre seus triunfos e
perseguições, sobre suas descobertas quase secretas. E, no final, compreenderei
melhor quem eu — leitor — sou.” (Alberto
Manguel)